sexta-feira, 22 de maio de 2009

A quinta história - Clarice Lispector

Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.

A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.

A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranqüila.
Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.
A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora,um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! — essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de...” — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.
A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? - como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? - no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem “adeus”, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”.
A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas...

Ode à simplescidade

A noite enegrece o rio
E faz do fim da cidade,
Cujo próprio nome não comporta,
Uma inacreditável paisagem:
A estrada, o viaduto...
As obscuras águas do Paraibuna.

domingo, 17 de maio de 2009

Acróstico melancólico

Diante de tantas possibilidades na véspera
O dia parece incrível... descanso, TV, almoços, livros...
Mas com o amanhecer, o passar das horas
Incrivelmente veloz... tudo se perde no ócio
Nada é suficiente para preencher o vazio
Gastamos o tempo e não nos satisfazemos
O dia acabou. Começa tudo de novo amanhã!

A lua?






A lua é uma pedra estúpida
Suspensa no ar e girando ao redor da terra
Por que, então, cobiçadíssima por russos e americanos?

A lua é uma bola branca
Que enfeita o negro e sombrio céu
Por que, então, inspira paixões e aparecimento de seres mitológicos?

A lua é apenas uma fina forma geométrica
Quando cresce ou míngua
Por que, então, incita o humor de homens e mulheres?

Diante do Sol a brilhar, é o nada, é o frio, é o medo e a melancolia
Uma transparente sombra no azul do inverno
Portal para sonhos, ilusões, infinitas dimensões...

domingo, 3 de maio de 2009

Considerações sobre Flamengo X Botafogo

Hoje é dia de futebol, é a final do Estadual. E me encontro numa cidade do Rio... já imaginaram não é? Um bando de fanáticos flamenguistas e poucos fiéis e auto-suficientes botafoguenses respiram o tal jogo, ou seja, enchem o saco de quem não está nem aí para essa final.
Não que eu seja contra o futebol, tenho meu time de preferência e nenhum problema eu revelá-lo, esteja ele na primeira, segunda ou terceira divisão... é, isso mesmo, sou tricolor de coração, Fluminense, sim, com muito orgulho. Também me empolgo quando estamos entre os mais bem cotados do ano, também espero ansiosamente as finais das quais participamos... mas tenho certeza de que não encho o saco de ninguém por conta disso. E nem sofro. Não ganho nada, quer meu time ganhe quer meu time perca.
Quando o seu time é campeão, você ganha alguma coisa? O clube te envia algum dinheiro? Um ingresso para o próximo jogo, uma camisa, um bônus qualquer que seja? Não. Tenho certeza de que, assim como eu, ninguém ganha nada além de alegria ao ver seu time ser campeão. A não ser numa aposta entre fanáticos! Então, gente! Para que essa euforia toda? Para que tentar humilhar as outras torcidas o tempo todo? Para que as carreatas infinitas que se formam depois dos jogos atrapalhando o trânsito de quem nada tem a ver com isso? Para que brigar com a família, com o amigo de infância e com todos os outros tocedores para defender que "não, não estava impedido, esse juiz é um filho da... mãe." Claro. Coitado do juiz. Coitados dos adversários. Coitados dos que são obrigados a conviver com o fanatismo exagerado e prepotente de quem é flamenguista ou com a auto-suficiência esporádica de quem é botafoguense (E olha que nos últimos jogos o Botafogo fez dois gols contra, hein!)
Eu sou obrigada. Estou cercada de flamenguistas, vascaínos e botafoguenses fanáticos... daqueles que gritam o jogo inteiro, que brigam com qualquer um que fale mal, mesmo que seja a velha avó que não tem noção do que está falando, e que ficam (isso é o pior!) o tempo todo se achado o máximo porque onze jogadores que sequer sabem de sua existência cumpriram seus papéis na profissão que escolheram e venceram, mesmo não sendo apaixonados por aquele time (Olha que impessoal isso! O jogador defende quem o paga e não sua paixão, e os bobos torcedores o idolatram!). Deram um momento de alegria aos fanáticos. E amanhã, a vida continua igual. Os jogadores recompensados pelo traalho bem feito. E os fanáticos com o mesmo dinheiro no bolso. Quer dizer, alguns tenham talvez um pouco menos, por conta das preparações e comemorações do jogo.
Que irracional!
"Não, meu coração não é maior que o mundo, é muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores, por isso gosto tanto de me contar!" (CDA)